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Após um dia de abertura histórico, marcado por manifestações culturais de resistência, os dirigentes e delegação do Sindjus participaram, nesta quarta-feira (27/4), do primeiro dia de debates do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) em Porto Alegre, no qual temas fundamentais desdobraram-se em dezenas de mesas com participantes de diversos países.

 

Capitalismo, democracia e sistemas de justiça

O primeiro painel da tarde, realizado no Auditório Dante Barone, contou com a participação do jurista e professor da USP Alysson Mascaro, da advogada Luciane Toss, e do doutor em Direito porto-riquenho Carlos Rivera-Lugo. A mesa debateu a problemática do sistema de justiça que não assegura direitos. Além disso, os painelistas fizeram uma forte crítica ao perfil de juristas, magistratura e membros do Ministério Público, de maioria conservadora, que legitimam os retrocessos sociais, e a importância de estancar a onda antidemocrática no país. 

 

 

Impactos do capitalismo no mundo do trabalho

O auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa, recebeu na tarde a mesa Capitalismo, desigualdades, relações sociais, mundos do trabalho e sistemas democráticos de justiça.

As reflexões propostas pela socióloga francesa Jules Falques, pela presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico-BA), Creusa Oliveira, e pelo doutor em Educação e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, tiveram como ponto central o fim do sistema capitalista para a construção do “outro mundo possível”, que tenha como pilares a igualdade e solidariedade, baseado na construção coletiva e em relações sociais e com o meio ambiente. 

Neste contexto, os painelistas abordaram o papel do sistema de justiça na perpetuação do capitalismo, como um sistema econômico, social e de exploração da classe trabalhadora. “Sou trabalhadora doméstica, faço parte da classe operária, contribuo para a economia e quero um sistema de justiça que garanta o direito de todos. Não é favor que a gente está pedindo”, apontou Creuza Oliveira.

O painel encerrou convidando o público a para construção dessa nova realidade a partir das próximas eleições, repensando as estruturas e instituições, oferecendo alternativas populares de economia e produção de bens e serviços. Antes da última mesa do dia, o músico porto-alegrense Mauro Moura apresentou uma música autoral.

Vítimas do Sistema de Justiça

À noite, o Dante Barone lotou para a mesa “Vítimas do Sistema de Justiça”, pessoas com trajetórias de vida bem distintas mas, em comum, todas impactadas por injustiças.

“Esse sistema eu conheci através da dor”, iniciou Ana Paula Oliveira.  Nascida e criada na favela de Manguinhos (zona norte do Rio), a pedagoga teve o filho, Johnatha, assassinado em 2014, aos 19 anos de idade, com um tiro nas costas disparado por um policial militar. Junto com outras mães de sua comunidade, formou o Coletivo Mães de Manguinhos, para denunciar a violência policial, a impunidade e protestar por justiça. Mas não essa que está posta. “A justiça está trabalhando em prol de pessoas que não somos nós (o povo pobre, favelado)”. 

Ana Paula levou para o palco um cartaz com fotos de jovens, todos  assassinados por policiais, da favela de Manguinhos, e citou casos de outras comunidades onde são frequentes invasões e mortes de jovens “por agentes do Estado, que deveriam zelar por eles”, casos que nunca são investigados e cujos responsáveis nunca são punidos. Diante dessa realidade, ela faz uma provocação ao público, para que cada um assuma parte no enfrentamento. “Estou aqui com essas pessoas para dizer que nós podemos e devemos transformar esse sistema de justiça”, assinalou.

Também integrou a mesa Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, militante dos direitos humanos que enfrentava o poder das milícias na periferia carioca e foi assassinada em março de 2018. Para a advogada, a sociedade “vive num sistema de justiça que não condiz com o que a gente precisa, que não é para o negro, para mulher, para LGBT”.

Ela destacou que a morte de sua filha foi como um divisor de águas, um marco, que fez de Marielle um símbolo de resistência e para mobilizar a revolta e fazer com que as pessoas se posicionassem. Apesar de dois dos envolvidos na morte de Marielle terem sido presos, o caso não foi resolvido. A ausência de respostas caracteriza, para Marinete, também um tipo de violência de Estado. “Já são quatro anos sem respostas, já foram cinco delegados. (…) O Rio precisa dar uma resposta para a gente”, declarou. Marinete lembrou que este ano é decisivo para uma mudança de curso, em virtude das eleições, e reforçou a importância de unidade do campo progressista para vencer o projeto autoritário representado por Jair Bolsonaro.

Outra vítima do sistema de Justiça, o jornalista Luis Nassif contou ao público sobre os ataques e as tentativas de cerceamento de sua atividade profissional. Em razão de reportagens que denunciavam escândalos envolvendo personagens poderosos, sofreu condenações, teve matérias censuradas, contas e bens bloqueados. Entretanto, pontuou, essas punições materiais nada significam perto das violências sofridas por suas colegas de mesa. “Isso é briga de brancos”, destacou, marcando a diferença de tratamento em relação à cor, classe e gênero. “Daqui para frente teremos que pensar em um outro patamar de direitos”, disse. Para Nassif, esta transformação exige uma radicalização, um necessário aprofundamento da democracia, com participação social em todas as políticas públicas. 

A mestre em direito público Fernanda Kaingang é a primeira advogada indígena do Sul do Brasil e do povo Kaingang. Por conflitos com a Justiça relativos à posse da terra em que  vivia, está há seis meses refugiada, e veio ao Fórum denunciar o genocídio indígena e os diversos tipos de violência institucional contra seu povo. Destacou o abandono, a eliminação e invisibilização da cultura indígena e a permissividade do atual governo em relação a ataques de madeireiros, ruralistas e garimpeiros a comunidades tradicionais. “Onde está o espaço dos indígenas em 2022? Nossa diversidade tem sido deixada para trás, no sistema de justiça e fora dele”, apontou.

“O direito do meu povo é baseado no diálogo e não em violência” 

Fernanda lembrou a tragédia do assassinato de Daiane, menina kaingang de 14 anos assassinada no ano passado, destacando o descaso institucional com o crime e reforçando a vulnerabilidade desses grupos. Reiterou que o arrendamento de terras, problema antigo, é responsável por massacres de etnias indígenas há muito tempo (informou que já em 1967, a ALRS instaurou CPI para investigar a questão), e contou que em 1975 sua mãe, Andila, escreveu ao então presidente da República, em pleno regime militar, pedindo o fim da intrusão de terras. Neste momento de sua fala, chamou Andila, que subiu ao palco para entregar à presidenta Dilma Rousseff um documento de denúncia e pedido de socorro às comunidades tradicionais. “O direito do branco escreve coisas que eles nunca cumpriram. Nossa língua foi proibida, nossas terras foram vendidas (…) fomos deixados para trás pelo sistema de Justiça”, declarou Fernanda. 

Uma das pessoas mais afetadas pelos problemas do sistema de justiça brasileiro, a ex-presidenta Dilma Rousseff logo no início de sua fala exaltou o poder da mobilização. “A resistência, a luta política é feita de pessoas, e as pessoas mostram a inconformidade, a capacidade de se indignar, se revoltar”. Ao enfatizar essa resistência, mencionou a coragem das mães integrantes da mesa ao enfrentar a violência institucional contra os pobres, que é também fruto do racismo estrutural. Nesse aspecto, pontuou a ligação entre a história escravagista e colonialista do Brasil e as desigualdades que se perpetuam, ressaltando que as elites econômicas até hoje se beneficiam desse sistema.

“Quando a Justiça tarda, ela falha”

Dilma também reforçou a importância de conhecer a história para fazer o enfrentamento adequado às injustiças. “Quando a gente fala em memória e verdade, se fala em organização política e estratégia de denúncia”, destacou. Ao relatar diversos momentos nos quais foi vítima de violências como as que enfrentou na ditadura, lembrou que somente em seu governo foi efetivada a criação da Comissão da Verdade, segundo ela, uma “pálida retomada do direito à verdade histórica do país”, no sentido de que não  se trata de simplesmente conhecer o que passou, era necessário fazer a justiça de transição. “Nós não fizemos e hoje pagamos o preço por não ter feito”, lamentou. 

Após, apontou os diversos desdobramentos do golpe de Estado que a destituiu do poder, com ênfase para o processo de desmonte das políticas e conquistas das gestões populares e o avanço do conservadorismo neoliberal e neofascista no Brasil. Mas reforçou que o momento é de mudanças, lembrando as recentes viradas políticas em países da América Latina com a retomada de projetos políticos progressistas, e chamou todos e todas a fazer parte deste processo no Brasil, especialmente nas próximas eleições.

 

 

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