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“Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente (grifo nosso). ¹

São 115 páginas da sentença na qual consta o trecho acima. Nesta parte é feita a primeira fase da dosimetria da pena (cálculo da pena-base que leva em consideração as condições subjetivas da pessoa condenada, nos termos dos artigos 59 e 68 do Código Penal). É na dosimetria dessa sentença que a juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, faz menção à raça do sentenciado, um homem negro, como se fosse uma condição desfavorável a se considerar, para aproximar o tempo da pena ao máximo permitido.

Como explica Katia Moraes, jornalista e integrante do coletivo M’banza² de política preta, existe uma base para este pensamento, que tem origem nos apontamentos do médico judeu Cesare Lombroso (1835 – 1909), considerado o pai da criminologia e autor de um livro de 1876 intitulado “O Homem Delinquente”.  Para escrever este livro, ele trabalhou com pesquisas de análises físicas (fenotípicas) em pessoas encarceradas, relacionando estas características a supostas tendências criminosas. Na visão de Lombroso criminosos eram menos evoluídos, e algumas dessas características eram a pele e cabelo escuros. 

No Brasil, tivemos Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), um médico que seguiu a mesma linha de Lombroso e foi autor de vários livros, dentre os quais se destacam: “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, de 1893; e “Mestiçagem, Degenerescência e Crime”, de 1899. Esta última, uma obra muito difícil de ler (principalmente se você é negro e está em 2020!), em que ele faz uma análise das características físicas (assim como Lombroso) e socioeconômicas de pessoas miscigenadas, apontando que elas eram um problema para o país. 

Atualmente é fato notório que não há ligação entre características fenotípicas de pessoas negras com a propensão à criminalidade. Porém, em que pese o fato que essa falácia deveria ter ficado no século passado, ela surge de forma expressa na sentença supramencionada em 2020.

E sabe o porquê dessa sentença ter causado tanto burburinho nas redes sociais? Não é a questão de ter sido valorada negativamente a raça do sentenciado mas, na verdade, por conter expressamente o fator “raça” no decisum, em vez de ter ficado implícito, como já é de costume. 

Isso é tão real que se constata através de dados estatísticos. Segundo uma pesquisa feita pela Agência Pública³, no Estado de São Paulo, pessoas negras são mais condenadas por tráfico de drogas (Art. 33 da Lei 11.343/06), mesmo quando com menos quantidade de material ilícito apreendido do que as pessoas brancas.

Pela pesquisa, 71% das pessoas negras denunciadas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em processos criminais de tráfico de drogas ilícitas foram condenadas, contra 67% das pessoas brancas. Além disso, a desclassificação do crime de tráfico para o de “posse de drogas para consumo pessoal” (Art. 28 da Lei 11.343/06) é de quase 50% a favor para os casos em que figura como ré uma pessoa branca, do que quando a ré é uma pessoa preta. Quais seriam os motivos para isso senão “em razão de sua raça”?

Para Silvio Luiz de Almeida – jurista, filósofo, professor e presidente do Instituto Luiz Gama -, que leciona sobre o tema, o racismo transcende questões puramente individuais, pois é estrutural e naturalizado, de modo que medidas basilares precisam ser tomadas em relação a isso nos seguintes termos: “O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ‘ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição’. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”. 

Também citando Silvio Almeida, Karen Luise de Souza Pinheiro5, juíza de Direito em Porto Alegre e conhecida como “a magistrada negra do Rio Grande do Sul”, diz que o racismo estruturou a sociedade brasileira, que estabeleceu como são as relações entre pessoas brancas e pessoas negras, em especial de pessoas que foram violentamente sequestradas de África e trazidas pra cá. A sociedade e as instituições foram projetadas para funcionar assim. Esse é o modus operandi ‘natural’ que considera normal ter mais de 60% da população negra encarcerada no Brasil e cerca de 38% – praticamente o dobro da população negra gaúcha -, encarcerada no Presídio Central de Porto Alegre. Há um perfilamento racial, uma filtragem. Há um grupo de pessoas escolhido para ser abordado, revistado, prendido, acusado e condenado

Karen Luise expõe também que há um mito da democracia racial no Brasil e que, ainda que haja cerca de 20% de pessoas negras no Rio Grande do Sul, em comparação a 80% de pessoas brancas, não há a devida representação proporcional de pessoas negras nas instituições, principalmente no Judiciário, quando até o ano passado, de 800 magistrados aproximadamente, haviam apenas 5 juízes negros e ela como única juíza negra. Continua: “o racismo está posto na nossa sociedade. Temos que ver e trabalhar o direito penal com perspectiva de gênero e com perspectiva de raça. A fase da negação do racismo acabou”.

Citando José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a magistrada diz o seguinte: “aquele joelho que foi visível em George Floyd, se replica e se multiplica na nossa sociedade. Há muitos joelhos invisíveis na nossa sociedade que precisam ser removidos dos pescoços das pessoas negras que vivem no nosso país, que vivem no nosso planeta. E o papel do Direito Penal é fundamental nisso. Como está sendo aplicado o direito e como estão sendo enxergadas as relações raciais no nosso país. (…) Na visão clássica, o direito penal vem para proteger os direitos fundamentais. Porém, o direito penal atualmente não protege os jovens negros, os terreiros de candomblé, não tutela as comunidades indígenas e quilombolas, não protege as mulheres negras. 

Ela conta que, como magistrada atuante há anos em varas criminais, têm a percepção de que as mulheres negras ingressam nas penitenciárias, por exemplo, por conta de um sistema de alta complexidade, e não apenas como condenadas por processos judiciais, mas como acompanhantes dos companheiros. Muitas, cotidianamente, andam pelos corredores dos fóruns e presídios sem serem partes de processos, mas por terem familiares envolvidos, devido ao encarceramento em massa dos negros6, e é necessário sopesar as circunstâncias estruturais que levam pessoas negras a serem vítimas ou rés dos processos judiciais e a relação com o racismo institucional.

Sobre o racismo institucional, Silvio Almeida leciona o seguinte: “De tal modo que se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combater o racismo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas. É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem: a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo – por exemplo, na publicidade; b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição; c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais; d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero”. 

Nessa toada, Karen Luise Pinheiro cita a Resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)7, que diz respeito à política de cotas às pessoas negras no âmbito do Poder Judiciário, e afirma que deveria abranger também os estagiários no artigo 2ª da normativa, o qual prevê ser obrigatório o preenchimento do percentual de 20% das vagas oferecidas nos concursos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. 

Atualmente os cargos de estágio estão previstos no Artigo 3° da Resolução supracitada, que prevê o preenchimento de modo preferencial, mas não obrigatório. No entanto, a normativa vai além, relata que, apesar da discricionariedade e conveniência da Administração em relação a preenchimento de cargos em comissão e concessão de funções gratificadas, é primordial que os gestores públicos que têm influência direta nas indicações e contratações de pessoas no âmbito do Poder Judiciário, busquem pessoas negras para preencher esses cargos e funções. É necessário tomar consciência de como cada pessoa (principalmente se branca e que se diz antirracista), deve agir, aceitando e não negando que possui privilégios e combatendo as ações racistas, consciente ou inconscientemente, para que um dia, de fato, possamos bradar que “todos somos iguais” sem peso na consciência, ou no pescoço das pessoas negras.

Conforme a magistrada, importa muito isso para que as pessoas brancas que estão ali aprendam a conviver com as pessoas negras num mesmo ambiente de trabalho e também para a especialização prática dessas pessoas, servindo como uma via de mão dupla. Ela faz essa fala direcionada aos seus colegas magistrados e eu estendo isso às pessoas que chefiam os cartórios, como escrivães, distribuidores e contadores. 

Duas magistradas e um cenário bem delimitado de como a representatividade negra e crítica nas instituições e posições de poder é necessária para que haja realmente igualdade racial no país. Concluo que se têm consciência negra quando se busca a real ciência da situação sociopolítica e econômica em que a população negra está inserida e marcada pelo racismo estrutural. 

VITÓRIA ALVES FIDELIS é servidora do Tribunal de Justiça do RS (TJRS).

 

Referências: 

  1. Trecho retirado do Processo de nº 0017441-07.2018.8.16.0013, 1ª Vara Criminal da Comarca de Curitiba, juíza Inês Marchalek Zarpelon.
  1. MORAES, Katia. Coletivo M’banza de política preta –  <https://www.facebook.com/contato.mbanza>
  1. BARCELOS, Iuri et al. “Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo”. Agência Pública – agência de Jornalismo Investigativo. São Paulo. Disponível em <https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/>, acesso em 11 de novembro de 2020.
  1. ALMEIDA, Silvio Luiz de. “O que é racismo estrutural?”. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
  1. Centro de Estudos TJRS. “Direito Penal, Gênero, Racismo e Comunidades Tradicionais”. Diálogos Telemáticos. 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=3iNibvAepGM>, Acesso em 11 de novembro de 2020.
  1. WANDERLEY, Paula Isabel Bezerra Rocha. “”Daltonismo racial”: encarceramento em massa como punição pela raça”. Conjur. 2018. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-mai-16/paula-rocha-encarceramento-massa-punicao-raca>, Acesso em 11 de novembro de 2020.
  1. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 203 de 23/06/2015 – Dispõe sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2203>, acesso em 11 de novembro de 2020.