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Negro, nordestino e revolucionário. Fez de sua vida instrumento de luta contra todas as injustiças de seu tempo. Carlos Marighella inspira gerações a perseguir ideais de justiça e liberdade. Político, escritor e poeta, sempre enfrentou com coragem os tiranos e estendeu sua luta por décadas, até o dia em que foi emboscado e assassinado, há 51 anos.

Marighella sustentava com orgulho a alcunha de “inimigo público número um”, dada pelos próprios militares que comandaram o Brasil durante a ditadura. O baiano, nascido em 5 de dezembro de 1911, filho de uma negra e um imigrante italiano anarquista, foi o principal articulador político e ideológico da luta contra o regime autoritário no país. Defensor e incentivador da guerrilha como forma de resistência à repressão militar, Marighella não se contentava apenas em escrever manifestos e insuflar a luta armada através de seus textos. Aos dezoito anos, enquanto cursava Engenharia na Escola Politécnica da Bahia, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em pouco tempo, o jovem militante tornou-se um dos principais líderes do partido, e fundou, na clandestinidade, a Ação Libertadora Nacional (ALN). Participou de inúmeros protestos com enfrentamento direto com a polícia militar. Sua primeira prisão ocorreu em 1932, por conta de críticas pesadas feitas em forma de versos ao então governador da Bahia, Juracy Magalhães. A poesia é uma forte vertente da obra do guerrilheiro, e o acompanhou durante toda a trajetória política.

Marighella começou a escrever poemas durante o curso de Engenharia. Colegas e professores ficavam impressionados com a capacidade do jovem de transformar complexas teorias e explicações científicas em versos líricos. Abaixo, um exemplo da perspicácia do jovem estudante do Ginásio da Bahia:

“Doutor, a sério fala, me permita

Em versos rabiscar a prova escrita.

Espelho é a superfície que produz,

Quando polida, a reflexão da luz.

Há nos espelhos a considerar

Dois casos, quando a imagem se formar.

Caso primeiro: um ponto é que se tem;

Ao segundo um objeto é que convém.

Seja a figura abaixo que se vê,

O espelho seja a linha beta ce.

O ponto F um ponto dado seja,

Como raio incidente R se veja.

O raio refletido vem depois

E o raio luminoso ao ponto 2.

Foi traçada em seguida uma normal

O ângulo 1 de incidência a R igual.

Olhando em direção de R segundo,

A imagem vê-se, nítida, no fundo (…)”

A obra poética de Carlos Marighella possui temática predominantemente patriota e libertária. O baiano transmitia em versos seu amor pelo Brasil, as paisagens naturais de nosso país, a alegria de seu povo, seus ideais de liberdade, seu descontentamento com a repressão. Esses poemas foram compilados sob o título ‘Rondó da Liberdade’, mesmo nome do poema abaixo:

 

Rondó da Liberdade

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,

mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,

que não é racional renunciar a ser livre.

Mesmo os escravos por vocação

devem ser obrigados a ser livres,

quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre…

O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,

e pode mesmo existir quando não se é livre.

E no entanto ele é em si mesmo

a expressão mais elevada do que houver de mais livre

em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

 

A obra de Marighella pelo mundo

Carlos Marighella sempre esteve na mira dos poderosos. Preso e torturado diversas vezes, nunca abandonou seus ideais nem se deixou desanimar com as ameaças e violência física. Após enfrentar a ditadura varguista, em 1945, foi anistiado, e participou do processo de redemocratização do país e da reestruturação legal do Partido Comunista. Em 1946, escreveu o tratado “A Religião, o Estado, a Família”, no qual contestava a estrutura social vigente. Nas primeiras eleições diretas após a redemocratização, foi eleito deputado federal pelo estado da Bahia. Durante o governo Dutra, em 1948, teve o mandato cassado e viu-se obrigado a voltar para a clandestinidade, sempre ativo na militância e oposição aos governos autoritários. Perseguido pelos sucessivos governos, sofreu um atentado em 1964, foi novamente preso, e conseguiu ser liberto, através de um habeas-corpus. Seguiu lutando e participando de protestos e manifestações de repúdio à ditadura, sendo novamente caçado pelos militares, até a noite de 4 de novembro de 1969, quando foi pego numa emboscada por agentes do DOPS, e executado.

O Manual do Guerrilheiro Urbano, escrito por Marighella em 1969 e publicado pela primeira vez em forma de panfleto, percorreu o mundo e inspirou grupos revolucionários de quase todos os continentes, durante as décadas de 60 e 70. O guerrilheiro baiano ainda abordou em sua obra a questão da reforma agrária, na publicação “Alguns Aspectos da Renda da Terra no Brasil”, de 1958, na qual faz considerações que se mostram ainda pertinentes na atualidade.

Em 1970, o Ministro do Interior da França vetou a venda do livro Pour la libération du Brésil (Pela Libertação do Brasil). Contrário à decisão, e no intuito de defender e garantir o direito de livre expressão, formou-se um grupo composto por 24 editores franceses para publicar a obra.

Os ideais de Marighella não morreram com ele. A experiência acumulada em quarenta anos de luta e resistência foi mantida viva em seus textos teóricos e líricos. Traduzido em vários idiomas, Marighella foi lido na América Latina, Europa, Ásia e África, e sua obra ainda inspira leitores por todo o mundo, até os dias de hoje.

 

Liberdade

Não ficarei tão só no campo da arte,

e, ânimo firme, sobranceiro e forte,

tudo farei por ti para exaltar-te,

serenamente, alheio à própria sorte. 

Para que eu possa um dia contemplar-te

dominadora, em férvido transporte,

direi que és bela e pura em toda parte,

por maior risco em que essa audácia importe. 

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,

que não exista força humana alguma

que esta paixão embriagadora dome. 

E que eu por ti, se torturado for,

possa feliz, indiferente à dor,

morrer sorrindo a murmurar teu nome” 

São Paulo, Presídio Especial, 1939